O MERCADO FINANCEIRO E O CORONAVÍRUS – PARTE 5
FUNDOS DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO
Falar da excepcionalidade do momento atual já se tornou um clichê, e nos últimos dois meses quase todos os conteúdos produzidos se iniciaram dessa forma. A nossa rotina se alterou, e a nossa forma de consumir e de interagir com o mundo também. Em plena semana do Dia das Mães, quantos de nós não estariam, em tempos normais, enfrentando um shopping lotado à procura daquele presente especial? A tangibilidade dessa cena pode ajudar a entender melhor o tema de hoje: Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs).
Este é o último texto da série “O Mercado Financeiro e o Coronavírus”, e o nosso objetivo é justamente conectar duas realidades que às vezes parecem muito distantes: o cotidiano das pessoas e o universo dos investimentos. O mercado de capitais se desenvolveu (e continua a se desenvolver) para auxiliar no progresso da atividade econômica, por meio da redução dos custos de financiamento e do compartilhamento de riscos. É nesse mercado que os projetos imobiliários conseguem maior quantidade de recursos, de forma mais rápida e diretamente com o investidor.
Os entrelaçamentos entre a “economia real” e o mercado são a chave para analisarmos os impactos da pandemia de coronavírus nas aplicações financeiras. As pessoas, enquanto consumidores e investidores, contribuem para o funcionamento da economia. Ao consumir, geramos receita para as empresas e, ao investir, emprestamos dinheiro a elas em troca de retorno no futuro, para que, com os recursos, possam expandir seus negócios e ofertar ainda mais produtos e serviços. É dessa forma, com pessoas consumindo e investindo também, que a atividade econômica se expande. Por outro lado, em momentos de crise, a aversão ao risco nas duas pontas tende a retroalimentar a desaceleração.
Do ponto de vista do investidor, o paradoxo do tripé risco x retorno x liquidez pode ser imaginado como uma banqueta com um dos apoios levemente menor. É aquele banco antigo na casa da avó que é meio cambeta e que exige atenção de quem se senta sobre ele, para não tombar. Se o tripé fosse perfeito, seria fácil conseguir o máximo de retorno, com baixo risco e altíssima liquidez. Vale dizer que, há alguns anos, no Brasil com taxa Selic de dois dígitos, conseguíamos a estranha façanha de superar esse paradoxo com títulos públicos de liquidez diária. Hoje, contudo, com os juros na mínima histórica, essa “aberração” no mundo dos investimentos não existe mais. O desafio do equilíbrio volta, então, ao centro da discussão, e corresponde à necessidade de sempre termos que abrir mão de algum desses pilares. Ou temos um bom retorno, com risco controlado e baixa liquidez (caso de alguns Títulos de Crédito Privado); ou assumimos mais risco, na expectativa de maiores retornos com liquidez elevada (caso das Ações); ou damos preferência a baixos retornos, com risco reduzido e disponibilidade imediata do dinheiro (como na Poupança e nos Títulos Públicos).
Em momentos de crise, em que os retornos de diversas classes de ativos são comprimidos, voltar a analisar se não houve mudanças estruturais no “pé” do risco se torna essencial, pois é no tênue equilíbrio de um tripé manco que devemos nos posicionar enquanto investidores. Por isso, para chegarmos aos Fundos Imobiliários foi importante termos avaliado os riscos relacionados aos ativos de Renda Fixa e de Renda Variável, nos textos anteriores. Esse arcabouço vai ajudar no entendimento dos riscos no presente caso, então é interessante dar uma olhada na Parte 3 e Parte 4 desta série, se ainda não o fez.
Os FIIs são classificados de acordo com a sua estratégia, de modo que existem no mercado: os Fundos de Papel — que investem em recebíveis imobiliários, principalmente CRIs; os Fundos de Tijolo — cuja principal estratégia de renda consiste no aluguel de espaços físicos para terceiros; os Fundos de Incorporação — que são uma subcategoria dos Fundos de Tijolo, mas investem no desenvolvimento de novos projetos para locação ou venda futura; os Fundos de Fundos — os FOFs, que são como uma grande cesta na qual todos os outros tipos de Fundos Imobiliários podem ser adquiridos; por fim, os Fundos Híbridos, que, como o nome sugere, possuem a capacidade de investir seu capital em mais de uma das modalidades mencionadas anteriormente.
Essa classificação inicial é pertinente, pois nos permite entender algumas dinâmicas de risco mais genéricas, antes de entrarmos em casos específicos. Um Fundo de Papel que investe em CRIs possui características semelhantes às de um Fundo de Crédito Privado, demandando uma análise de crédito do emissor — como vimos na Parte 3 — e, por funcionar como uma Renda Fixa, tem riscos reduzidos. No outro extremo, os Fundos de Incorporação apresentam riscos relacionados ao próprio setor imobiliário, ou seja: da aquisição do terreno até o momento em que o imóvel está pronto para ser utilizado, o investidor arca com riscos de atraso na obra, de a prefeitura não liberar o “habite-se”, de o empreendimento não conseguir uma licença ambiental, de a obra ficar mais cara que o planejado etc. Logo, os Fundos de Incorporação são os mais arriscados da categoria. Já nos FOFs e Fundos Híbridos, há maior liberdade na composição de um portfólio, além de controle do risco específico pela diversificação, de acordo com o cenário.
Hoje, porém, vamos nos dedicar a analisar os Fundos de Tijolo, que alugam os imóveis a terceiros, gerando renda pro investidor. Esses FIIs podem investir, por exemplo, em shopping centers, galerias, hotéis, edifícios de escritórios (lajes corporativas), edifícios industriais, hospitais, armazéns, galpões de logística, edifícios residenciais, agências bancárias, lojas, salas comerciais, imóveis destinados a instituições de ensino etc. Em resumo, praticamente qualquer estabelecimento físico que tenha algum interessado em pagar para ocupá-lo.
Essa diversidade de empreendimentos que percorre toda a cadeia produtiva se comporta de maneira muita distinta em momentos de crise, como o de agora. Mas, de forma geral, podemos listar dois indicadores que devem sempre ser acompanhados de perto: vacância e inadimplência. Porém, quando uma crise balança a economia, olhar para os dados históricos não nos ajuda muito a traçar um cenário prospectivo. O desafio é analisar o que pode afetar a vacância e a inadimplência daqui para frente. Por mais que existam contratos longos com cláusulas restritivas que trazem mais segurança a esses investimentos, o exercício que propomos não deixa de ser válido.
Primeiramente, é preciso saber que tipo(s) de ativo o regulamento do Fundo permite. A grande vantagem dos FIIs de Tijolo é que seus ativos existem de forma física. São imóveis, que possuem CEP e podem ser encontrados no Google Maps, por exemplo. Conhecer o ponto, saber se o local tem as condições ideais para cumprir o que propõe, é quase intuitivo, principalmente se esse imóvel for localizado na sua cidade. A vivência cotidiana nos dá insights importantes sobre o que dá certo ou não em alguns bairros, ou se já há shoppings demais, talvez de menos, em determinada região. Um ponto bom, bem localizado, já é um diferencial; afinal, os espaços, principalmente em zonas urbanas adensadas, são cada vez mais escassos.
O segundo aspecto importante é identificar quem são os locatários dos imóveis. Uma empresa sólida com forte geração de caixa, ou, ainda, um hospital que tem estrutura montada para um propósito específico, possuem menos chances de mudar de lugar do que um escritório de advocacia, por exemplo. A partir do cruzamento dessas duas perguntas, “onde é o ativo?” e “para quem estou alugando?”, conseguimos ter uma bússola melhor calibrada para analisar a vacância e a inadimplência, tanto para a situação atual quanto para o pós-crise.
É preciso enfatizar que se ganha dinheiro investindo nesse tipo de Fundo pelo recebimento de dividendos (que provêm do aluguel pago pelos locatários) e pela valorização da cota no momento da venda. Por isso, sua classificação em Renda Fixa ou Variável não é trivial — e, na verdade, é pouco produtiva. A cotas dos Fundos sofrem marcação a mercado, ou seja, seu valor vai depender de variáveis como oferta e demanda, taxa de juros, expectativa de inflação, mudanças regulatórias do setor, entre outras. Os dividendos, por sua vez, podem ser estimados, pois os aluguéis são estabelecidos por contrato, mas, mesmo assim, também podem sofrer oscilações por renegociações, taxa de ocupação, atrasos e não pagamento. Por essas razões, compreender a natureza híbrida da formação dos rendimentos dos FIIs é mais profícuo do que uma tentativa de enquadramento nas categorias de Renda Fixa ou Variável.
Para termos uma referência dos retornos no mundo dos FIIs, como o Ibovespa para os investimentos em Ações, a B3 também calcula o IFIX. Esse índice dos Fundos Imobiliários reflete não apenas as variações de valor das cotas, como também o impacto da distribuição dos rendimentos do Fundo, sendo considerado, por isso, um índice que avalia o retorno total dessa carteira teórica. Em 2019, o IFIX valorizou-se 35,95% — mais, inclusive, que o Ibovespa, que registrou ganhos de 31,58% no ano [1]. Em 2020, da máxima à mínima, o índice dos FIIs chegou a cair 33% em menos de três meses, mas conseguiu recuperar parte em abril e terminou o mês acumulando queda de 18,58% no ano.
Essa volatilidade no IFIX é reflexo do cenário atual, e torna-se difícil falar de forma generalizada. Cada FII vai apresentar um desempenho diferente, devido aos riscos específicos de cada ativo.
Os shoppings, por exemplo, estão quase todos fechados há mais de um mês em muitas cidades. Com a inatividade das lojas, o varejista não vende. Sem receita, os lojistas buscam renegociar o aluguel. Sem o recebimento dos aluguéis, os Fundos Imobiliários procuram, então, proteger o patrimônio, e distribuem menos, ou até retêm, os dividendos que antes eram distribuídos mensalmente.
Por outro lado, os galpões logísticos estão se beneficiando dessa situação. Com o aumento da demanda por armazenagem, tanto de produtos alimentícios, farmacêuticos e de limpeza, quanto do e-commerce em geral, esses galpões veem suas operações se expandirem [2].
Lajes corporativas estão no turbilhão de uma possível mudança cultural e de relações trabalhistas, com a expansão do home office. Será que essa nova modalidade de trabalho remoto vai alterar a estrutura física das empresas? Há mais perguntas que respostas no tabuleiro, e diferenças por segmento e por tipo de locatário nos obrigam a olhar Fundo a Fundo, caso a caso.
Compreender como a crise afeta os dividendos e as cotas de forma distinta é essencial, pois a recomposição das perdas do curto prazo pode ser mais ou menos provável em cada um dos segmentos. Diferentemente de outros tipos de produtos que analisamos ao longo desta série de textos, os FIIs se constituem sob a forma de um condomínio fechado, ou seja, não é permitido o resgate de cotas antes do prazo de duração e/ou vencimento do Fundo, que pode ser determinado ou indeterminado. Sendo assim, a única alternativa para o investidor obter o seu dinheiro investido de volta é por meio da venda da sua participação no mercado secundário para outro investidor. Essa dependência do mercado secundário, que não é tão desenvolvido no Brasil, acaba trazendo mais risco ao investimento, pela escassez de liquidez, o que aumenta ainda mais a volatilidade das cotas.
Por isso, ter um horizonte mais longo permite que não percamos o sono ao ver os dividendos ou o valor das cotas despencando. Se, no caso dos Fundos de Tijolo que analisamos, o ativo for bom, bem localizado, com inquilinos que não vão falir, os aluguéis em algum momento serão pagos, e as quedas nos preços podem ser uma oportunidade de entrada. O “desconto” nas cotas torna o investimento mais atrativo, visto que as crises vêm e instauram o caos mas, invariavelmente, passam.
Entender um pouco melhor sobre o mundo dos investimentos é um caminho sem volta: o que era tão corriqueiro quanto ir ao shopping acaba se transformando em uma análise. A beleza do conhecimento é a consequente tomada de consciência do efeito cascata dessa pandemia, não só sobre a saúde pública, mas sobre a economia e as mudanças de comportamento da sociedade. Todas essas esferas estão integradas. Da dúvida sobre o presente da minha mãe, de forma quase que automática, surgiu este último texto, que conclui as análises sobre os impactos do coronavírus no mercado financeiro.
Autoria: Lorena Laudares
Parte 1 – O mercado financeiro e o coronavírus
Parte 2 – O mercado financeiro e o coronavírus
Parte 3 – O mercado financeiro e o coronavírus
Parte 4 – O mercado financeiro e o coronavírus