O mercado financeiro e o coronavírus – Parte 1
O CONTEXTO
É tudo muito novo. A crise que estamos vivendo é um somatório de peculiaridades para todos. Seja no mercado financeiro, no trabalho, na medicina ou na dinâmica familiar. Na virada do ano, quem iria adivinhar que boa parte do mundo passaria o mês de março em quarentena, trabalhando em home office, ou ainda que os mercados financeiros desabariam, como aconteceu?
Buscar entender (e escrever sobre) a crise atual no olho do furacão é uma tarefa ingrata, mas necessária. Ingrata pois, a cada dia, com a enxurrada de informações que recebemos, o texto se desatualiza e precisa de revisão. Necessária, pois precisamos conectar os fragmentos e traçar um norte, uma estratégia, uma rota de fuga, no meio desse turbilhão. Estamos respirando a história e, deste momento caótico, que com certeza vai para os livros didáticos, precisamos tirar aprendizados.
Então, qual a situação que temos hoje?
Temos uma pandemia de coronavírus que se configurou em uma crise de saúde pública global. Temos também uma guerra de preços do petróleo entre Rússia e Arábia Saudita que não sabemos quanto tempo vai durar. No mercado financeiro, a palavra é volatilidade. A aversão ao risco e a pressão de venda vêm jogando os preços dos ativos para patamares baixos numa velocidade que nunca se viu. Temos ainda que nos adaptar a uma rotina completamente diferente trabalhando de casa, com cidades inteiras em isolamento social e quarentena.
Como efeito colateral da tentativa de contenção do vírus, há também um risco econômico de recessão que se aproxima e que tende a impactar mais as pequenas empresas, os trabalhadores informais e os autônomos.
Traduzindo esses acontecimentos: 1) temos uma crise no mercado financeiro que se tornou disfuncional com uma volatilidade acentuada e os preços dos ativos não refletindo os fundamentos; 2) no campo produtivo, estamos vivendo uma crise de oferta (pela ausência dos fatores de produção — pessoas e insumos), e uma crise de demanda (pois as pessoas em suas casas consomem menos, principalmente menos serviços) e 3) estamos indo ao encontro de uma crise de crédito, em especial nos mercados internacionais, o que preocupa muitos analistas.
É uma conjuntura difícil, sem dúvidas, mas, para olhar pra frente, precisamos antes entender: como o mercado financeiro chegou até aqui?
Fechamos dezembro de 2019 com o Ibovespa, principal índice da B3, aos 116.530 pontos. Na última sexta- feira, 3 de março de 2020, o mesmo índice havia perdido mais de 45 mil pontos, ou seja, mais de 40% do seu valor. Essa queda tão brusca, tão rápida e tão imprevisível pegou o mercado realmente de surpresa. Mas um conjunto de fatores anteriores, combinados aos que já pontuamos, colaboraram para este momento.
2019 foi um ano muito positivo para os ativos de risco, em geral. No Brasil, em especial, a boa perspectiva da agenda de reformas estruturais permitiu que tivéssemos um movimento de corte de juros muito acentuado. A taxa Selic, referência de juros aqui, iniciou 2019 em 6,5% a.a. e terminou dezembro a 4,5% a.a. (hoje, já estamos em 3,75% a.a.). Nos EUA, mesmo em guerra comercial com a China — o que trazia certa incerteza — os índices acionários tiveram altas de, em média, 30% no ano. Com juros em queda, os recursos das pessoas foram migrando da Renda Fixa tradicional (Poupança e Títulos Públicos) para ativos de maior risco na busca de melhores retornos. Tivemos, aqui, um ano excepcional para o Ibovespa, que se valorizou 31,58%.
O que significa essa combinação de juros nas mínimas e Bolsa nas máximas históricas? Duas coisas: a primeira é que essa migração em massa para a Bolsa inflacionou os ativos, que ficaram mais caros. E a segunda, que é consequência da primeira, é que foi criado um ambiente no qual os investidores de fato estavam mais expostos a riscos.
No mercado financeiro, acreditamos em certa ciclicidade da economia, apesar de termos uma perspectiva de progresso em horizontes mais longos. E como uma imagem vale mais que mil palavras, usamos metáforas para explicar esses movimentos. Quando observamos uma tendência de alta nos preços das Ações, identificamos um bull market, isso porque o touro (bull em inglês) ataca jogando seu oponente para cima. No sentido oposto, quando a tendência é de queda falamos em bear market, uma vez que os ursos (bear em inglês) atacam de cima para baixo.
Esse era o panorama no início de janeiro: estávamos em um bull market. A perspectiva da assinatura do acordo comercial entre China e EUA (que de fato aconteceu) com uma visão otimista do encaminhamento das reformas pelo Congresso criou um sentimento coletivo de que: “agora o Brasil vai dar certo”. Vínhamos com a economia engatinhando desde a forte recessão de 2015 e 2016, anos em que, por motivos domésticos, estivemos em descasamento com o mundo — que já estava em alta de a recuperação da crise de 2008. Apesar de sabermos da ciclicidade dos mercados, a grande dificuldade é identificar os pontos de virada.
Esse otimismo inicial recebeu um banho de água fria quando, em 23 de janeiro, a China surpreendeu o mundo com o lockdown de várias cidades da província de Hubei — inclusive de Wuhan, epicentro do surto de uma nova doença da qual pouco se sabia. Era véspera do feriado do ano novo chinês e milhões de pessoas ficaram trancadas em suas casas, o que gerou um impacto econômico tremendo para as cadeias globais de produção. Essas medidas foram vistas à época como “extremas” para a contenção do surto de uma doença pulmonar que, até aquele momento, tinha menos de 600 casos confirmados no mundo. Nesse mesmo dia, a OMS ponderou que não havia evidências suficientes para caracterizar o coronavírus como uma emergência de saúde pública internacional.
23 de janeiro de 2020 foi também o dia em que o Ibovespa chegou ao seu ponto mais alto da história: 119.527,63 pontos. Considerando que temos uma diferença de 11 horas de fuso horário entre São Paulo e Pequim, quando o pregão começou aqui, já tínhamos a informação de que a maior quarentena da história da humanidade estava em curso.
Começava-se a olhar pra China com preocupação. A volta do feriado foi adiada algumas vezes, as escolas não voltavam e, principalmente, os trabalhadores migrantes que foram visitar seus parentes no ano novo não conseguiam mais voltar aos seus empregos. A paralisação da produção industrial na China tem impacto em um mundo que depende de componentes produzidos no país asiático. E a tensão do mercado aumentou, principalmente no Brasil, que exporta muitas commodities para a China
Nos EUA, os índices continuaram a subir, batendo recorde depois de recorde, até que, em 19 de fevereiro, tiveram a máxima histórica até hoje: 3.386,15 pontos. No final de fevereiro a situação começou a ficar mais complicada do ponto de vista de saúde pública, com os casos de Covid-19 se espalhando rapidamente pelo mundo e a Europa se tornando um novo epicentro. Em 26 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas, o pregão em São Paulo começou depois do almoço e registrou queda de 7%.
O pós-carnaval foi o início na mudança de percepção do mercado financeiro sobre a situação. Na semana seguinte, um novo agravante entrou em cena: a guerra de preços de petróleo entre Arábia Saudita e Rússia. No dia 05 de março, a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) recomendou que seus membros e aliados reduzissem a produção em 1,5 milhão de barris por dia para aliviar o impacto da diminuição da demanda em virtude da epidemia de Covid-19. A Rússia, que costumava coordenar as operações com a Opep, não quis cooperar mais com o cartel. A justificativa russa era que a política de preços da Opep+ beneficiou os EUA, que passaram a ser os maiores produtores do mundo com o gás de xisto.
No final de semana (07-08 de março), a Arábia Saudita iniciou uma guerra de preços: já que o acordo de redução da produção não foi alcançado, os sauditas decidiram, então, destruir as finanças de seus concorrentes que extraem petróleo a um custo mais elevado. Inundando o mercado de petróleo, a queda do preço do barril foi de mais de 20% em um dia e, na segunda-feira, 09 de março, teve início uma sequência de acionamentos de circuit breakers nunca antes vista na história. Nos EUA, o mecanismo de interrupção das negociações não era usado desde 1997. No Brasil, a última vez havia sido em 2017, no dia que ficou conhecido como Joesley Day — em que a Bolsa caiu em decorrência do vazamento do áudio gravado pelo empresário Joesley Batista, que registrou o então presidente Michel Temer autorizando a compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha, que estava preso por conta de desdobramentos da Lava Jato.
O surto de coronavírus foi classificado como pandemia apenas em 11 de março e, naquele momento, o cenário já se invertia: a China, epicentro inicial, mostrava um nível de contágio interno cada vez menor, enquanto os casos cresciam velozmente na Europa e nos EUA.
Na Itália, a situação é alarmante pela alta mortalidade. O número de óbitos está em 16.500 , cinco vezes maior que o registrado na China O sistema de saúde está enfrentando uma superlotação, e a região da Lombardia é a principal afetada. O novo epicentro é agora os EUA, com quase 350.000 de casos confirmados. O governo americano está anunciando medidas econômicas numa escala gigantesca e adotando o distanciamento social até pelo menos o final de abril. O primeiro indicador de magnitude da crise foi o número de pedidos de seguro desemprego: foram quase 10 milhões em duas semanas.
No país asiático, as quarentenas foram sendo suspensas ao passo que o número de casos era controlado, e as medidas de restrição à movimentação de pessoas foram sendo flexibilizadas. Hubei, a província mais afetada, já restabeleceu as operações em 85% das grandes empresas de matérias primas. Há agora o medo de uma nova onda de contaminação na China, de casos importados por pessoas que tenham contraído o vírus fora do país. Ciente dessa vulnerabilidade, o governo chinês já está adotando protocolos específicos para aqueles que chegam do exterior e a liberação das pessoas para voltarem às suas vidas normais está ocorrendo de forma gradual.
Em resumo, o segundo trimestre do ano começou com o barril de petróleo sendo negociado próximo dos 30 dólares — uma queda de aproximadamente 50% desde o início do ano. O número de casos confirmados de Covid-19 ultrapassa a marca de 1 milhão e o número de mortes excede os 70 mil em todo o mundo. Houve também a migração do epicentro de casos da China para a Europa, e agora para os EUA, e a retomada gradual do funcionamento da economia chinesa. Contudo, esse espalhamento do vírus pelo mundo trouxe também ainda mais incertezas sobre a perspectiva econômica pois, com as medidas restritivas sendo impostas por diversos países e o crescimento do Ocidente em xeque, a situação do escoamento da produção chinesa se dificulta.
Para completar, no cenário político, neste ano — que já está caótico o suficiente — os americanos vão às urnas em novembro para escolha do presidente. No Brasil, temos eleições municipais.
Esse conjunto de fatores que muitas vezes retroalimentam a espiral negativa de expectativas levou às quedas significativas das Bolsas pelo mundo. A contextualização dessa crise se faz importante pois as respostas que estão se desenhando conversam com a natureza complexa da interação de um mundo globalizado e conectado. Os governos ficam com a missão de responder “adequadamente” ao medo das populações de morrer, ao mesmo tempo em que olham para a nuvem pesada da crise econômica que se forma no horizonte.
Na próxima semana, vamos falar sobre quais medidas estão sendo tomadas neste momento e como essas respostas buscam solucionar os três problemas que elencamos inicialmente: o problema do mercado financeiro, do setor produtivo e de crédito.
Autoria: Lorena Laudares
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