A reação da China ao coronavírus
Com o surto de coronavírus trazendo incertezas e volatilidade para o mercado, desde meados de janeiro várias instituições e bancos vêm reduzindo as projeções de crescimento da economia chinesa em mais de 1% para o primeiro trimestre e projetando entre -0,2% e -0,7% para o ano de 2020. A magnitude da queda vai depender da velocidade do governo chinês para debelar a situação. As consequências de uma contração desse tamanho para a economia do mundo são evidentes. Contudo, acreditamos que mais ângulos precisam ser analisados para construirmos uma versão mais acurada do momento que estamos vivendo. Talvez, a “motivação” do governo chinês em “correr atrás do prejuízo” vá além de apenas recuperar um indicador econômico. Vemos o vírus não apenas como um problema de saúde pública com desdobramentos econômicos. É uma ameaça à estabilidade do sistema político como um todo, e vamos buscar elaborar esse ponto ao longo do texto.
A China, desde 2012, quando Xi Jinping assumiu como Secretário Geral do Partido Comunista, vem construindo um discurso de alinhamento de expectativas da população e dos agentes econômicos internacionais: a China não vai mais crescer às taxas que vinha crescendo até então. De 1980 (primeiro ano da série histórica do FMI) a 2012, a média do crescimento foi de 10% ao ano. As mudanças estruturais introduzidas por Deng Xiaoping no período de Reforma e Abertura, a partir de 1978, permitiram uma expansão da economia que, sabidamente, tinha um prazo de validade. O fenômeno de coordenação de um discurso oficial para um crescimento não tão acelerado ficou conhecido como o “Novo Normal”.
Um marco não só narrativo, mas de políticas públicas para a “aceitação” desse crescimento em torno dos 6%, foi o discurso do Xi Jinping no 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, em 18 de outubro de 2017. Em uma fala extensa, Xi fez uma retrospectiva do que aconteceu na China e no mundo de 2012 a 2017. No sistema internacional, foram apontadas a lenta recuperação econômica do mundo pós crise financeira, a emergência de conflitos regionais e a intensificação da importância das questões climáticas e ambientais para as discussões de governança global. Ou seja, diversos desafios para o crescimento econômicos já estavam sendo plantados no mindset coletivo, o que justificaria o desempenho mais fraco. Para contornar essas adversidades, uma série de políticas públicas foram elaboradas pelo governo. Entram em ação nesse momento grandes projetos, como o Made in China 2025 e a Iniciativa Cinturão e Rota, também conhecida como a Nova Rota da Seda.
“O Novo Normal”, enquanto um novo estágio de desenvolvimento, exige um posicionamento não só mais ativo sobre o crescimento, mas também mais crítico. O princípio norteador do Novo Normal é o fato que de o crescimento econômico deve vir acompanhado de uma “relação harmônica com a natureza”, assim como uma melhor distribuição geográfica de seus resultados dentro da própria China. Esse foi o momento em que tanto questões ambientais quanto disparidades regionais, principalmente as diferenças entre as zonas rurais e urbanas, foram apontadas como potenciais desestabilizadores do processo de construção de uma “sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”.
O cenário traçado pelo governo considera como necessário um crescimento qualitativo, e que este é condicionado a variáveis internas e externas. De um país inicialmente direcionado para a exportação, a China agora precisa cada vez mais se voltar para o mercado doméstico e para a inovação tecnológica. Pontuar os desafios e as ferramentas escolhidas para lidar com esse dilema faz parte de uma espécie de pacto social pelo crescimento futuro. É o que Hu Angang quer dizer com “não se trata do começo do fim; mas, sim, do fim do começo”.
É importante ressaltar que há um prazo para a construção de tal “sociedade moderadamente próspera”. E esse prazo, conhecido na China como “Duplo Centenário”, possui duas fases. A primeira se refere aos 100 anos da fundação do partido, em 2021, e a segunda é a comemoração, em 2049, dos 100 anos da instauração da República Popular da China. A ideia é que essa transição tenha sido concluída de modo que em 2049 a China tenha se tornado um “país socialista moderno e próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso”.
O que essa breve análise de documentos oficiais chineses nos indica? A desaceleração econômica é necessária, programada, e que o governo sempre busca elencar muitos desafios para mostrar que, a cada dia, fica mais difícil crescer.
Se, por um lado, o governo vem sempre puxando as expectativas para baixo, há um esforço enorme em se manter a taxa de crescimento próxima da meta estipulada. Isso acontece porque se existe algo que pode gerar instabilidade interna na China, esse algo é um descontentamento generalizado com o governo. Há uma preocupação muito grande com a geração de empregos urbanos, principalmente para absorver os jovens com diploma de graduação. Desemprego nessa faixa etária é muito sensível para o partido, pois, historicamente, são os jovens os mais ávidos por mudanças mais liberalizantes (como na época do Massacre da Paz Celestial em 1989, evento que manchou muito a imagem da China no mundo).
Xi Jinping, que buscou centralizar o poder, desde o início do seu primeiro mandato vem justamente diminuindo a força política desses jovens, reestruturando e reduzindo a destinação de verbas para a Liga da Juventude Comunista (Communist Youth League of China – CYLC). A CYLC perdeu quase 9 milhões de membros entre 2012 e 2017 (último dado divulgado), mas, mesmo assim, são 81,25 milhões de jovens organizados politicamente.
É importante salientar que a insatisfação com o governo é traduzida, quase que de forma automática, em uma insatisfação com o próprio Partido Comunista Chinês como um todo e, por consequência, com um sistema político inteiro. A compreensão dessa sobreposição do Estado, do Governo e do Partido é essencial para vislumbrarmos até onde as decisões de políticas públicas podem chegar.
De largada, é preciso ter em mente que o Partido Comunista Chinês não é um partido como os que estamos acostumados. Ele é anterior à construção da China enquanto República Popular. Essa precedência histórica é importante. O partido foi criado em 1921, e a revolução conduzida por Mao Tsetung se colocou no poder em 1949. Considerando que a vitória comunista deu fim a um período de guerra civil, ou seja, um período em que as instituições estavam suspensas, o Estado Nacional recém-nascido foi elaborado à imagem e semelhança da estrutura do partido já existente. A atual Constituição da República Popular da China, que é de 1982 (após o período de Revolução Cultural), atribui ao Partido Comunista o papel de protagonista e fundador da República.
A indissociabilidade, inclusive jurídica entre Estado, Governo e Partido, além do modelo político-eleitoral, faz com que não haja formas legais de “trocar quem está no poder”, como acontece no Ocidente. Ao mesmo tempo que isso fortalece o partido, é também um flanco desprotegido, pois há uma capacidade de contágio de uma decepção acerca da condução do governo, que se espalha para o sistema todo.
Voltando ao momento presente, um descontentamento popular na forma de condução do surto de coronavírus preocupa bastante o governo chinês. E vemos que talvez o excesso de cautela com medidas extremas de restrição de mobilidade no território nacional seja uma estratégia para não abrir espaço a críticas de negligência (apesar de já estarem levantando essa bandeira, ainda mais após a morte do médico Li Wenliang, um dos primeiros a alertar o mundo sobre o coronavírus).
Medidas em resposta a calamidades públicas, que, tipicamente, são conduzidas pelos governos (e que muitas vezes acabam por assegurar ou desestabilizar presidentes no poder – vide a Guerra ao Terror nos EUA após o 11 de Setembro), na China são executadas pelo partido, visto que inclusive as 5 forças armadas chinesas (Forças Terrestres, Força Aérea, Marinha, Força de Mísseis Balísticos e a Força de Apoio Estratégico) estão sob a guarda do Partido e não do Estado Nacional.
Além do interesse óbvio de se perpetuar no poder, vemos que a capacidade de manutenção das taxas de crescimento do PIB está relacionada a uma habilidade de mobilização tanto do aparato burocrático estatal, quando da moral da sociedade civil pelo Partido Comunista da China. Não estamos negando que surgirão impactos importantes no crescimento chinês, mas a dependência econômica dos grandes bancos e empresas estatais faz com que algumas chaves de destravamento da economia estejam nas mãos do governo-partido-Estado.
Esse ponto merece mais uma breve digressão histórica. Em 1978, quando Deng Xiaoping assume o poder, após a morte de Mao Tsetung que pôs fim a Revolução Cultural, o ambiente encontrado era desastroso: o partido estava enfraquecido, com questionamentos pelos excessos cometidos por Mao, mas o mais preocupante para o crescimento à época era o fato de que todas as universidades do país ficaram fechadas por dez anos. Na verdade, as universidades foram convertidas em espaços para o aprendizado dos ensinamentos de Mao e do comunismo. A pergunta que pairava sobre os dirigentes chineses era: como desenvolver e industrializar um país sem o capital técnico necessário?
A resposta natural era: educação. Tradicionalmente, encaramos a educação como um investimento de longo prazo, mas era preciso correr contra o tempo, e as pessoas precisavam ainda trabalhar para mover a economia. Para piorar a situação, havia uma demanda reprimida de uma década que não teria como ser absorvida pelas universidades. O que o governo fez? Criou cursos noturnos de capacitação dentro das fábricas. Milhões de pessoas se especializaram e contribuíram para que a China realizasse o feito de crescer em média 10% ao ano por 30 anos, e sair de um país que nem nas estatísticas era considerado para a segunda maior economia do mundo.
A China tem essa capacidade de pensar em soluções “fora da caixa”, somada a uma mobilização política-social. Há um enorme sentimento coletivo de que o país precisa da população, além de uma adequação da estrutura à necessidade, que é surpreendente. Um movimento como esse já está em curso no presente. Durante o surto de coronavírus, a solução encontrada para não parar o país foi o home office. Com milhões de pessoas seguindo a recomendação do governo de não saírem de suas casas para evitar o contágio, muitas grandes empresas – incluindo Tencent, JD.com, Suning e Huawei, entre outras – incentivaram seus funcionários a trabalhar em casa. Algumas cidades e províncias, incluindo Xangai, adotaram medidas semelhantes, determinando períodos obrigatórios de quarentena, durante os quais as pessoas devem trabalhar remotamente.
O primeiro dia desses testes não foi dos mais tranquilos. Na segunda-feira 3 de fevereiro, os provedores de videoconferência, como o WeChat Work, da Tencent, o DingTalk, da Alibaba, e a empresa americana Zoom, foram sobrecarregados com muitos usuários reclamando de atrasos e interrupções. Contudo, rapidamente a DingTalk, que atende mais de 10 milhões de empresas na China e suporta videochamadas com até 302 pessoas, anunciou que, para lidar com o excesso de tráfego na Web, havia alocado 12.000 servidores adicionais para aumentar sua capacidade.
Já há inclusive sites chineses que apontam que a epidemia de coronavírus poderia transformar permanentemente a maneira como a economia chinesa opera, introduzindo uma nova era nas relações de trabalho, com o trabalho remoto figurando com uma solução que veio para ficar, não apenas uma medida temporária. Além disso, essa reconfiguração incentiva o desenvolvimento mais acelerado de produtos e serviços baseados em nuvem, sem contar em melhorias nos servidores. Esse tipo de aperfeiçoamento e inovação extrapola o âmbito da calamidade e gera benefícios no longo prazo para a China.
Um exemplo prático de como essas melhorias de servidores podem ser usadas é o Dia do Solteiros, em 11 de Novembro. O 11-11, como é conhecida a data, é uma “black friday” chinesa – em 2019, o Grupo Alibaba sozinho faturou US$ 38,4 bilhões em 24 horas. Nesse dia, os servidores ficam sobrecarregados, e há perdas por problemas de infraestrutura. Acreditamos que novos servidores devem melhorar o tráfego na rede e impactar positivamente as vendas.
Um outro ponto interessante, que diferencia a China dos modelos políticos que temos no Ocidente, diz respeito à estrutura de proteção social. Do lado de “cá” do globo, delegamos a representação coletiva aos sindicatos, tanto de operários quanto patronais. As associações de classe possuem relevância política pela capacidade de organização e mobilização de demandas específicas. Na China, voltando às leituras da Constituição do Partido Comunista Chinês e da República Popular, no preâmbulo de ambos os documentos, o primeiro “guia” de pensamento é o “Marxismo-leninismo”, e o destaque a Lênin é muito relevante nesse contexto.
A vertente do comunismo que inspirou Mao Tsetung, de forma geral, é de bases leninistas, e isso significa que há pouca abertura às “concessões ao capital”. Sindicatos, direitos trabalhistas e qualquer tipo de “benefício” ao trabalhador eram vistos por Lênin como um atraso à luta de classes – e a centralização do poder no Partido se torna um ponto chave. Sem a formação de grupos políticos que possam brigar pelo poder abertamente, o Partido concentra as disputas internamente e enfraquece as representações de classe. Esse enfraquecimento dos sindicatos não significa que não haja greves ou que os trabalhadores estejam completamente desprotegidos. Isso indica apenas que a capacidade de representação e a mobilização se tornam mais desarticuladas. E esse fato permite, por exemplo, maior “flexibilidade” em questões trabalhistas, que no Ocidente são, muitas vezes, vistas com desconfiança por observadores internacionais atentos aos direitos humanos.
Considerando essa estrutura institucional e a capacidade inovativa do governo chinês em solucionar problemas concretos, precisamos ter em mente que alguns pontos que restringem a atuação de governos ocidentais pela ótica do trabalho formal, por exemplo, estão ligados justamente ao poder de barganha de tais representações de classe. Na China, como medida emergencial para enfrentar o surto de coronavírus, não nos surpreenderia se as indústrias passassem a trabalhar em três turnos, ou em regimes de exceção com novos formatos de contratos trabalhistas.. Esse tipo de medida no Ocidente é mais lento e complexo, tendo em vista que o processo democrático necessita de aprovação em várias instâncias legislativas. Um congresso eleito possui um timing diferente se comparado a um regime que há 70 anos está no poder e não tem pretensão de sair. Não estamos de forma alguma valorizando o regime chinês em detrimento das democracias ocidentais. Estamos apenas apontando pragmaticamente que as formas de agir são distintas.
Com tudo apresentado, quando olhamos para a forma como a China está reagindo ao surto de coronavírus, identificamos, de um lado, o partido buscando se proteger de críticas, ao mesmo tempo que está preocupado com os impactos sociais e políticos que uma desaceleração econômica pode causar. O governo, entretanto, possui um hedge narrativo de que o crescimento econômico está cada vez mais difícil não só por questões internas, mas principalmente pelo ambiente internacional. O coronavírus, neste momento, pode inclusive emergir como um aglutinador nacional, visto que a calamidade pode ser convertida em ação conjunta do governo-partido-Estado com a população. Por fim, a capacidade de adaptação da estrutura às necessidades, como no caso já concreto do trabalho remoto, pode produzir externalidades que ajudem na recuperação econômica ao longo do ano. A única conclusão que podemos chegar é que ainda é muito cedo para definir como será o crescimento da China e do mundo no ano de 2020.
1- https://www.fitchratings.com/site/pr/10109959
2- O Congresso Nacional do Partido Comunista da China é a reunião mais importante do calendário político chinês. Esse Congresso acontece de 5 em 5 anos, e é o momento em que as principais mudanças estruturais são anunciadas. No caso do 19º Congresso de 2017, ficou decidido que se extinguiria o limite de dois mandatos para presidente na China, abrindo espaço para que Xi Jinping permanecesse no poder por tempo indeterminado. Além disso, o Pensamento de Xi Jinping foi adicionado às teorias que guiam a condução tanto do PARTIDO quanto do ESTADO NACIONAL, tornando-se parte da Constituição tanto do PCC quanto da República Popular da China
3- O Made in China 2025 tem como objetivo desenvolver a indústria nacional com observância da inclusão de conteúdo local de 70% para 2025. Foram elencados 10 setores chave: tecnologia da informação avançada, máquinas-ferramentas de controle digital e robótica, aviões, equipamentos oceânicos e navegação, equipamentos de transporte ferroviário, automóveis utilizando nova energia, equipamentos de energia elétrica, equipamentos agrícolas, novos materiais, biofármacos e equipamentos médicos.
4- A Nova Rota da Seda é, de forma superficial, uma iniciativa chinesa de conectar por mar e por terra a Ásia à Europa, passando pela África. Era inicialmente a união da Rota da Seda Marítima com o Cinturão Econômico da Rota da Seda, com projetos de construção de infraestrutura de portos, ferrovias, como também telecomunicações.
5- Angang, Hu. “Embracing China’s ‘New Normal”” in Foreign Affairs, Maio/Junho 2015: 8-12
6- 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China
7-https://www.ft.com/content/92412b4e-593a-11e6-9f70-badea1b336d4
8-https://www.statista.com/statistics/258126/number-of-communist-youth-league-of-china-cylc-members/
9- After waging hard, protracted and tortuous struggles, armed and otherwise, the Chinese people of all nationalities led by the Communist Party of China with Chairman Mao Zedong as its leader ultimately, in 1949, overthrew the rule of imperialism, feudalism and bureaucrat capitalism, won the great victory of the new-democratic revolution and founded the People’s Republic of China. (PREÂBULO, Constituição da CHINA, 1982, com as emendas de 1988, 1993, 1999, 2004 e 2018).
10-http://www.sixthtone.com/news/1005160/Remote%20Control:%20Coronavirus%20Has%20Millions%20in%20China%20Working%20From%20Home/
11-https://www.reuters.com/article/us-singles-day-alibaba-sales/alibabas-singles-day-sales-hit-record-38-billion-growth-slows-idUSKBN1XK0HD