Os Reis do Brasil
Agem como déspotas alguns dos homens e mulheres que parecem ter em suas mãos o destino do país. Como um quadro surreal, misturam-se as figuras deformadas pela corrupção e pelas negociatas políticas, num êxtase de poder e interesse pessoal que não guarda qualquer ligação com a realidade de milhões de brasileiros comuns. Estes, no escuro, assistem aos mandos e desmandos, num misto de conformismo, perplexidade e nojo.
No filme “Chatô, o Rei do Brasil”, a coisa não é muito diferente. Em vários aspectos, a história nos remete a um Brasil confuso e destrutivo, sem mocinhos. A própria produção e tudo que a envolveu são representativos. É curioso que, quando o projeto de Guilhermes Fontes começou a ser tocado, estava nascendo o real, moeda que nos últimos 20 anos simbolizou um modelo bem-sucedido de combate à inflação. Neste ano que o filme foi finalmente lançado, a inflação vai ultrapassar os 10%, numa rota perigosa de “desmontagem” econômica.
A polêmica levantada pelo uso dos recursos públicos direcionados à produção do filme é também digna de nota, num país em que o privado usa, abusa e se lambuza do público. A coisa pública por aqui (res publica, em latim, que originou a palavra República) não é entendida como “um bem de todos”, mas sim “um bem sem donos” e, por isso, de fácil apropriação para fins exclusivamente privados. É assim com a Petrobras, com as obras (ditas) públicas, com o lixo jogado nas ruas, com a destinação dos impostos.
Passando da vida real para dentro do telão, “Chatô, o Rei do Brasil” retrata ainda a relação viciada entre um dos mais poderosos presidentes do país e um dos mais poderosos empresários brasileiros. Com direito a muitas delações. Dá ânsia ver que todo esse formato se repete, décadas depois, com empreiteiros, executivos, banqueiros e nobres representantes dos Poderes republicanos.
Mostrado no filme, o episódio da importação fraudulenta dos aparelhos de TV, com direito a uma propinazinha no porto, é igualmente atual, e não só do ponto de vista da corrupção alastrada. A infraestrutura é mal planejada e, assim, os “fins justificam os meios”. Qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência.
Diferentemente do livro, da autoria de Fernando Morais (mil vezes melhor que o filme), a narrativa cinematográfica não é linear e carrega o espectador para universos psicodélicos, que só fazem aumentar seu desconforto com o que vê. O ambiente de um programa de auditório, que permeia a trama, torna tudo patético. Enquanto um híbrido de Chacrinha, Flávio Cavalcanti e Silvio Santos comanda com escárnio o “julgamento” rocambolesco de Assis Chateaubriand, seres igualmente híbridos e sarcásticos regem o futuro do Brasil com suas buzinas e deboches, diretamente da capital do país, em pleno século XXI.
No mais, “Chatô” nos lembra que leis, como a Teresoca, sempre foram produzidas a toque de caixa, para o interesse estritamente privado, às vezes de um só homem. Assim são as canetadas, ou pedaladas, que têm o poder de produzir um rombo fiscal paralisante em nome de um projeto de poder.
No cinema, a opção de um recorte da história conduzida pelo sexo reforça outros estereótipos de um Brasil que não se leva a sério. E que diminui sua própria cultura popular. Sem falar no menosprezo à construção democrática, com uma visão simplória de imprensa manipuladora.
Os críticos têm elogioado o filme. Não tive a pretensão, neste artigo, de fazer uma análise técnica. São apenas pensamentos, considerações e desabafos de uma brasileira comum, triste com o vandalismo comandado pelos que se dizem os reis do Brasil.